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Velha Casa da Lapa (17/28)
by fiume on July 10, 2005
Ali nasceu e morreu Cora Coralina. Nasceu Aninha, morreu famosa. Graças, na verdade, a Carlos Drummond de Andrade, que lhe escreveu uma carta sem destinatário, dizendo-se encantando com seus escritos, em 1979 -- e ela já tinha 90 anos!:

"Rio de Janeiro, 14 de junho, 1979

Cora Coralina,

Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admito e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encantamento, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina.

Todo o carinho, toda a admiração do seu

Carlos Drummond de Andrade"


Com um admirador como este, a imprensa nacional e os escritores, claro, foram saber de quem se tratava.

Chamava-se Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Nasceu em 1889 ("Venho do século passado e trago comigo todas as idades"), morreu em 1985, em Goiânia.

Escrevia desde menina, mas publicou o primeiro livro somente aos 75 anos. Casou-se em 1934 e foi morar no interior de São Paulo. Voltou pra Goiás só em 1956, mais de 20 anos depois da morte do marido, para a casa em que havia nascido. Vivia como doceira.

É claro que Cora Coralina faz parte de minhas lembranças de escola. Estudávamos sua obra, etc. Lembro de vê-la na TV, o rosto enrugado, a voz trêmula declamando suas poesias com estranha firmeza e contando histórias da cidade.

Não sou nenhum expert em literatura. Mas acho engraçado que nada em sua obra seja exatamente novo. Nem estilo, nem temática. Ela falava das histórias de Goiás Velho, dos becos, das ruas, das pessoas. Falava de boiadeiros, lavadeiras, operários, mulheres, prostitutas (mulher da vida, a quem chamava de irmã), crianças. Coisas cotidianas do interior.

Das memórias de estudante, guardo intrigado a "Oração ao Milho". Como falar assim da "planta primária da lavoura"?

"Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.

Meu grão, perdido por acaso,
Nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor, mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
Buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas do Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
Que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho."
©2007 fiume
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